O comboio descendente
por Licínia Quitério
A mulher pediu ajuda para elevar a mala pesada até ao lugar que a esperava, acima dos bancos. Era ainda uma mulher ainda jovem, com um farto cabelo negro enrolado sobre a nuca. Devia ser viajante habitual, sabedora de comboios e do que eles podem oferecer. Tirou os sapatos e colocou os pés já um tanto deformados sobre o pedal de descanso. Armou o tabuleiro que o banco da frente lhe oferecia e nele colocou o tablet em posição adequada para leitura. O dedo indicador direito a afagar as células invisíveis do aparelho, as imagens a descerem, a subirem, a correrem, de cá para lá, a fecharem, a abrirem textos e imagens. Fixou-se por fim no fac-simile duma página de um livro sobre Direito de qualquer coisa, um daqueles textos para quem estuda ciências jurídicas, se assim as posso nomear. Uma, duas, três páginas e desistiu do estudo. Deu uma volta pelo Facebook, o dela e os de alguns amigos, não fez comentário algum e mudou de rumo. Colocou os minúsculos auscultadores nos ouvidos, ligou os fios ao tablet, procurou um filme, só uma passagem, a mais famosa. Gene Kelly cantava, só para ela, a Serenata à Chuva e dançava, dançava. Just walking in the rain, dizia a boca dele, a mulher a meu lado movimentava a cabeça, levemente, a compasso, e os pulsos também rodavam com o guarda-chuva de Gene. Tão antigo o filme, tão nova ainda a mulher que, em vez de estudar, se decidiu pela magia do cinema, da música, agora aprisionada no seu tablet, a dar-lhe um sopro de felicidade naquela viagem de comboio descendente. Saiu antes de mim, sorriu-me, como que a dizer que percebera o meu interesse em lhe espreitar o tablet, a música que só ela ouvia e eu também sabia. Somos todos assim, com uma música em comum. Pode é acontecer que nunca nos sentemos lado a lado no mesmo comboio descendente.
Licínia Quitério
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